1 - Como se encontrava a situação em Portugal antes de COVID19
(diagnóstico prévio): na política, no economia, direitos das mulheres e
articulação de movimentos sociais?
A crise financeira de 2008 deu
lugar a uma crise económica, aprofundada pelo regime de austeridade promovido
pela União Europeia (UE) nos países do sul da Europa. Inicialmente adoptado
pelo governo social liberal do Partido Socialista (PS) e, entre 2011 e 2013,
uma coligação de direita constituída pelo Partido Social Democrata (PSD) e o
Partido Popular (CDS/PP) - no quadro de uma troika envolvendo a UE, o Banco
Central Europeu (BCE) e o Fundo
Monetário Europeu (FMI) - o programa de austeridade assentou numa estratégia de
desvalorização interna visando o resgate financeiro da banca, a desvalorização
do trabalho, o aprofundamento das privatizações e o desmantelamento do estado
social. Implicou um aumento brutal dos níveis de desemprego, precariedade,
desigualdade e pobreza. Os retrocessos ao nível do trabalho e do estado social
foram acompanhados por um discurso conservador, legitimando a sobrecarga das
mulheres em termos de trabalho pago e não pago, e pelo recuo em áreas como o
combate à violência doméstica e os direitos sexuais e reprodutivos - como é o
caso da recente conquista, em 2007, do acesso a aborto seguro e gratuito. Como
então alertámos corria-se o risco de cristalização de valores conservadores e a
tendência para a mercantilização das nossas vidas e dos nossos corpos. Apesar
do discurso da inevitabilidade, a implementação da austeridade gerou uma grande
onda de protestos ao que o governo respondeu com um aumento da repressão, sem
precedentes em mais de duas décadas. Foi neste cenário que, na sequência da
eleições de 2015 e perante a iminência da perpetuação do governo PSD/CDS-PP, o
Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) decidiram apoiar
um governo liderado pelo PS.
Os debates e a mobilização em
torno de lutas feministas e LGBTQIA* contribuíram para a consciencialização das
questões de género e direitos civis. Foram implementadas medidas de prevenção e
combate à Violência de Género e a transposição de artigos da Convenção de
Istambul, incluindo a criminalização do assédio sexual. Apesar de continuarem a
ser reportados pelas vítimas abusos de poder e desvalorização da violência de
que são alvo, ainda assim têm sido realizados alguns esforços na formação das
forças policiais. É destacar uma maior visibilização e mobilização na denúncia
do machismo institucional que ainda domina a justiça. Em 2018 foi também
introduzido o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género, o
que constituiu uma importante conquista do movimento LGBTQIA*.
Nos últimos anos, o movimento
anti-racista ganhou um novo fôlego com o novo protagonismo de ativistas e
coletivos das comunidades racializadas, nos quais é de destacar o papel de
ativistas e grupos feministas, na denúncia sobre a mentalidade colonialista e o
racismo estrutural que ainda persistem na sociedade portuguesa. Em 2018 e, mais
recentemente em 2020, foi alargado o acesso à nacionalidade originária e à
naturalização de pessoas nascidas em território português o que reflete a maior
capacidade de mobilização e impacto destes movimentos. É importante destacar
que estes movimentos têm sido alvo de especial repressão.
Verificaram-se retrocessos no
plano económico nomeadamente pelo ataque do direito à greve, a degradação das
condições laborais e do acesso à habitação. A precarização e a degradação dos
direitos laborais levadas a cabo com o programa de austeridade não se
inverteram e, até, se aprofundaram. Em Portugal há uma alta taxa de
participação das mulheres no mercado de trabalho mas isso coexiste com a
desigualdade salarial, a precariedade e a segregação laboral. Apesar de mais
qualificadas, as mulheres constituem grande parte da força de trabalho nos
segmentos salariais mais baixos (70% dos 2 decis mais baixos) e diferencial
salarial é da ordem dos 17%. A segregação significa que as mulheres estão pouco
representadas nas posições de poder e de decisão, concentradas em setores mais
precários e mal pagos (destaque para a restauração, hotelaria e limpeza) e em
atividades que representam a continuidade dos papéis de género na família, nomeadamente
nos cuidados (ex: limpezas, emprego doméstico, saúde, educação, hotelaria e
restauração).
É de destacar, por um lado, a
existência de um modelo social subprotetor e, por outro, predomínio do modelo
de ganha pão dual. O atraso histórico na construção do estado social, em
contracorrente com a tendência a nível europeu para o seu desmantelamento,
levou ao predomínio de modelo de social sub-protetor fortemente dependente da
família-providência, colocando pressões acrescidas às várias gerações de mulheres
sobrecarregadas com as tarefas de cuidados - por ex., é de destacar a muito
baixa cobertura da rede creches pública (cerca de ⅓). Este modelo através da
privatização dos cuidados centrada na família e nas IPSS’s usa a força de
trabalho não pago ou mal pago, das mulheres. Por outro lado, os baixos salários
tem sido compensados pelas persistência de um modelo de ganha pão dual,
colocando muitas as mulheres na dependência de um segundo salário para fazer
face às despesas quotidianas básicas, nomeadamente a habitação, especialmente
quando têm filhos a cargo, o que coloca pressões acrescidas sobre a sua
autonomia. Desta forma, muitas mulheres adiam a decisão de ter filhos e,
simultaneamente, há muitas situações de regresso à casa dos pais. Por fim, é de
destacar a moralização das medidas de proteção social numa lógica de controlo e
estigmatização das mulheres mais pobres. Há uma tendência para a multiplicação
de dispositivos tendentes à marginalização das mulheres mais pobres.
Assinale-se que Portugal tem sido dos países da Europa com maiores taxas de
encarceramento de mulheres.
Há diferenças territoriais. Nos
meios rurais ainda há um peso importante de situações de confinamento ao
trabalho doméstico, isolamento e acesso limitado a oportunidades de educação e
de emprego, ao mesmo tempo que são maiores as possibilidades de acesso a
atividades de auto-provisão, nomeadamente na agricultura. Em contexto urbano,
as dificuldades de acesso à habitação, uma maior mercadorização do trabalho
surge associado também a uma maior dependência do dinheiro para garantir a
sobrevivência. A degradação dos serviços públicos, a servicialização da
economia, a destruição de setores essenciais à soberania alimentar como a
agricultura e a pesca, monopólio da distribuição alimentar por grandes grupos
económicos e o crescente peso do
turismo, em especial no rescaldo da da crise de 2008, representam debilidades
estruturais que em contexto da pandemia configuram uma crise catastrófica.
Em 2019, pela primeira vez, desde
o fim da ditadura em Portugal foi eleito um deputado para a assembleia de um
partido de cariz neo-fascista. Em contrapartida, destacamos um maior peso e
visibilidade das mulheres na esfera pública. São 38% no parlamento, há várias
mulheres com papel de liderança partidária e nas últimas eleições foram eleitas
três deputadas negras. Além disso, as mulheres têm ganho especial destaque nos
conflitos laborais sectoriais nomeadamente na educação e saúde e, pela primeira
vez desde o 25 de Abril, a CGTP, a maior central sindical do país, é liderada
por uma mulher. Por outro lado, o impacto da onda global de greves feministas
2017-2020 tem colocado num nível o debate sobre o significado social do
trabalho e novas formas de organização da sociedade.
2. O que é que foi acentuado pela Covid19: crises de cuidado, economía,
violência contra as mulheres? Quais foram as respostas dos governos? Governos
de direita Vs Governos com propostas alternativas?
Numa primeira fase foi minimizada
a ameaça à saúde pública. As fábricas que constituíram os primeiros focos de
contaminação, no norte do país, continuaram a laborar colocando em causa a
saúde de trabalhadores/as, da população local e facilitando a disseminação da
doença. As primeiras respostas vieram do sector público com a paragem das
escolas e serviços não essenciais, sob pressão da opinião pública. Em muitos
casos foi a ação de resistência a maior arma na contenção do vírus - foi esse o
caso da greve das trabalhadoras da limpeza no Metro do Porto, exigindo
condições e materiais de proteção; ou de ações de protesto por quem trabalha em
centros comerciais em todo o país, exigindo o seu encerramento. Entretanto, com
o agravamento da situação em outros países como a Itália e o estado espanhol
foi adoptada uma estratégia de confinamento e limitação da circulação. Foi
declarado o Estado de Emergência que incluiu a suspensão de direitos
fundamentais como o direito à greve e o direito de resistência. Como então foi
denunciado, esta decisão estabeleceu erroneamente que a resposta à ameaça à
saúde pública gerada pela Covid-19 requer sobretudo medidas repressivas, que
põem em causa princípios fundamentais da democracia. Na verdade, foi sobretudo
a resposta voluntária, comunitária e não-coagida por parte de quem assegura
funções essenciais ao bem comum que efetivou respostas mais eficazes.
Trabalhadores e trabalhadoras do público e do privado procuram garantir os
serviços essenciais, muitas pessoas colocaram-se em quarentena voluntária e
verificaram-se algumas iniciativas para prestar ajuda a quem não podia sair de
casa. Organizações sindicais dos serviços públicos suspenderam o aviso prévio
de greve.
Setores não fundamentais da
economia tardaram ou nunca chegaram a parar e não foram garantidas as condições
mínimas de segurança, ou, mais cruel ainda, a licença remunerada para
trabalhadores/as doentes ou de risco. Muitas das mulheres que estiveram em
teletrabalho viram-se sobrecarregadas nas suas casas que se tornaram escolas e
local de trabalho, comprimindo tempo e espaço e aumentando a necessidade do
trabalho doméstico e de cuidados. A ”invasão” do laboral no privado indica que
se exige cada vez mais que vivamos para trabalhar. Assistiu-se, ainda, a uma
promoção do teletrabalho como forma de reduzir custos para as empresas e
aumentar a produtividade/rentabilidade de quem trabalha. O crescimento do
desemprego e os layoffs levaram a uma diminuição generalizada dos rendimentos.
E, ainda um aumento de desemprego cuja dimensão e impactos sociais e económicos
estão subavaliados pelas estatísticas. As medidas de apoio social, além de
tardias, deixaram de fora os setores mais precarizados, que não têm carreira
contributiva que garanta o acesso a subsídio de desemprego. Por outro lado,
destaque-se um cenário de crescente precarização do acesso habitação e
sobrelotação habitacional. Este tema é crítico visto que não é possível fazer
quarentena sem casa, e torna-se irrealista quebrar cadeias de contágio em casas
sobrelotadas e bairros degradados. Com a pressão do movimento do direito à
habitação os despejos foram temporariamente suspensos. Quem trabalha em setores
essenciais como a saúde, a distribuição alimentar e os transportes, continuou
laborar, em condições risco e em muitos casos em condições laborais e salariais
injustas. Verificou-se uma redução dos meios de transportes, já anteriormente
deficitários, o que se tornou um fonte adicionais e diária de risco para quem
estava a garantir as funções essenciais ao bem comum. Muitos profissionais de
saúde trabalharam sem qualquer protecção e nem sempre os seus direitos foram garantidos
em caso de quarentena ou contágio. Nos lares - onde o impacto da Covid19 foi
desastroso - têm-se verificado violações diárias de uma força de trabalho,
sobretudo feminina, mal paga e precarizada. Na distribuição alimentar e na
limpeza, a situação era particularmente gravosa, face à precariedade, o
subemprego e os baixos salários aí verificados.
A pandemia aprofundou o
isolamento das pessoas idosas, seja pela sua situação de vulnerabilidade
colocando em causa a sua capacidade e de autodeterminação, muitas vezes
infantilizadas. Desvalorizadas e estigmatizadas as pessoas idosas foram
tratadas como um fardo para a sociedade. A pandemia expôs a situação
insustentável dos lares e a hierarquia que existe em termos da valorização da
vida de umas pessoas em detrimento de outras.
Durante o confinamento as
mulheres ficaram mais expostas à violência doméstica devido à maior dificuldade
na denúncia e à dificuldade de adaptação e reorganização das estruturas e
serviços. Neste período assistiu-se um aumento exponencial no número de
denúncias e um aumento da gravidade e frequência das agressões, assim como de
relatos de situações de violência económica. A proteção social das vítimas tem
falhado em termos de intervenção integrada, descurando questões fundamentais como
o acesso ao emprego e a habitação.
O estado de emergência levou a um
maior policiamento que recaiu sobre os grupos, comunidades e territórios mais
estigmatizados e afectados pela pobreza e a exclusão social. Como são exemplo
os bairros populares onde vive muita população migrante, afrodescendente e
cigana que durante a pandemia tiveram de continuar a trabalhar e a usar os
transportes públicos, correndo o risco de ficar doentes - destaque-se aqui as
mulheres negras e imigrantes com peso grande no sector das limpezas.
Durante a pandemia foi facilitada
a ‘regularização temporária’ de imigrantes, face ao surto de Covid-19. Esta é
uma reivindicação de longa data das organizações de defesa dos direitos de
imigrantes que continuam a lutar para que a medida seja mais abrangente e se
traduza numa regularização efetiva. Apesar deste Despacho ser uma medida
positiva, é importante realçar que deixou muitas pessoas de fora, especialmente
as mais vulneráveis sem documentos. Além da bondade da medida ser duvidosa, o seu
caráter temporário indica que esta foi uma forma de mobilizar mão de obra
barata num contexto em que uma boa parte da força de trabalho estava em
confinamento para evitar expor-se aos riscos.
A manipulação mediática em torno
da pandemia abriu espaço à criação de bodes expiatórios - primeiro os idosos,
encarados como fardo, e já em cenário de desconfinamento, as comunidades
racializadas. Isto contribuiu para o pânico moral e a incorporação generalizada
de uma lógica assente no policiamento e controlo. Por outro lado, obscureceu as
reais causas da crise de saúde pública que residem nas políticas neoliberais
que não só levaram a um desinvestimento do sistema público de saúde como
contribuíram para a precarização e degradação das condições de vida, especialmente
dos setores mais empobrecidos e marginalizados. Este contexto foi
instrumentalizado por sectores mais conservadores e, em particular, por grupos
neofascistas, que instigaram à xenofobia e ao racismo ao mesmo tempo que, face
à crescente mobilização anti-racista e do movimento negro na denúncia do
racismo estrutural na sociedade portuguesa, procuraram veicular a negação do
racismo. Em Junho foi assassinato Bruno Candé, após repetidas ameaças racistas
e insultuosas. Em agosto assistimos, a uma concentração de um grupo neonazi em
frente à sede do SOS Racismo. Nos últimos meses esta e outras organizações
tinham sido grafitadas com mensagens de incentivo ao ódio. Em Agosto, a mesma
organização anti-racista recebeu um email dirigido a 10 pessoas, entre elas
ativistas e deputadas, intimando-as a abandonar o país em 48 horas e a
renunciar às “suas políticas”. Ao longo dos últimos meses assistiu-se à
escalada de manifestações racistas a um nível inaceitável, ameaçando democracia
e a integridade pessoal e física de companheiros e companheiras de luta.
O mundo não será o mesmo depois de 2020. As respostas neoliberais e repressivas à crise pandémica ameaçam as nossas vidas e a democracia. Mas perante este cenário organizamo-nos coletivamente para uma resistência global. Queremos alimentar a onda das mobilizações internacionais feministas, ambientalistas, anti-racistas, as lutas laborais e afirmar que estamos fartas deste sistema. É urgente construir e reforçar alianças para criar uma agenda comum para dar resposta à crise social que vivemos. Queremos iniciar uma transformação social global já!
Por uma sociedade onde o cuidado pela vida, pelas pessoas e pelo ambiente seja sempre prioridade.
Dar corpo ao manfesto: resistir para viver, marchar para transformar!
https://www.facebook.com/marchamundialdasmulheresPT/videos/3420967144649141
17 de Outubro de 2020
Marcha Mundial das Mulheres Portugal
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